quarta-feira, 8 de julho de 2009

Do popstar à mito global.


A ligeira passagem de Madonna pelo Brasil no ano passado demonstrou novamente o poder que um ídolo com larga notoriedade na mídia exerce sobre as pessoas de modo geral e mais ainda sobre os fãs e adeptos enlouquecidos. A cantora, eleita popularmente como ícone da música e do estilo pop, arrastou uma multidão no Rio e em São Paulo, uma verdadeira legião de apaixonados e ensandecidos que não se importaram nem um pouco em passar dias em situação precária e desconfortável esperando os portões se abrirem. Para um fã incondicional, talvez ainda seja pouco diante da chance gloriosa de estar cara-a-cara com o "deus terreno" da sua vida. Tanto Madonna, diva de uma multidão fiel, quanto outros ídolos nacionais ou internacionais, sejam eles ligados à música, ou ao cinema e a qualquer veículo comunicacional de larga repercussão, possuem a capacidade de atrair admiradores e até seguidores fanáticos. Muito dessa atração se deve à projeção copiosa da imagem do indivíduo a ponto dele ser potencializado de maneira exaustiva e aparecer como alguém quase sobre-humano para o grande público.

Também podemos fortalecer o poder do mito com o recente acontecimento - morte de Michael Jackson - onde mobilizou as pessoas de várias partes do planeta, com o apoio constante da mídia que fortalecia a comunicação dos acontecimentos.

Essa habilidade que chamarei de criação fabulatória, ou seja, a invenção de um astro pelo fomento da sua imagem pública via narrativa, está intrinsecamente vinculado ao surgimento avassalador das tecnologias de comunicação, mais precisamente aos aparelhos audiovisuais que hoje são presenças correntes na sociedade. Também a mídia impressa não fica atrás. Nos primórdios do mundo moderno, a produção escrita foi a responsável em disseminar informações, até então restritas a perímetros concentrados, para outros lugares e outros leitores. Com o tempo, o letramento foi-se tornando uma realidade, e muitas pessoas puderam acessar os jornais, os folhetins, os livros e, com a evolução dos meios de comunicação de massa, passaram a se informar pelo rádio, os filmes e a televisão. Na atualidade, a internet é o ápice da acessibilidade a mundos inóspitos e a contingentes de dados e elementos nunca antes imagináveis.

Tais vias informativas, especialmente as de caráter documental, não permaneceram como canais livres de intervenção. Ao contrário, foram tomadas como meios legítimos de expressar conteúdos arbitrários e fatos avaliados subjetivamente, quando não deturpados por desconhecimento de causas e historicidade ou pela má índole propositada. Assim, jornais e revistas, programas de televisão e demais segmentos da imprensa - não todos, felizmente - incrementam as notícias com pitadas ficção capciosa, afim de promover, não apenas a troca de informações, mas a persuasão do receptor pelo tratamento adulterador, seja este do ponto de vista ético lícito ou ilícito. Assim, a criação fabulatória, em grande parte, se sustenta numa informação inflada e faustosa, desproporcional ao estatuto da verdade, cheia de intrujices e malabarismos insinuantes que conduzem agradavelmente os receptores a uma inópia intelectual, chamando ao primeiro plano a ingenuidade emocional e a imaturidade crítica. Há praticamente uma dependência viciosa aos ídolos midiáticos, como se eles realmente fossem (e não representassem) o retrato daquilo que a humanidade sempre almejou durante o curso da história.

Os Estados Unidos produziram vários destes astros. Podem ser citados, além de Madonna, Michael Jackson, Marilyn Monroe, Elvis Presley, Britney Spears (?!) e a lista segue. Alguns mais "eternos", outros passageiros, em diferentes campos de atuação e épocas, cada qual com sua majestosa carreira (em muitos casos equivocada) postou no cenário mundial como parâmetro de sucesso e exemplo de indivíduos bem sucedidos - sinônimo, para sonhadores, de felicidade. Cada um desses artistas das telas evoca no senso comum um desejo de autotransfiguração obsessiva, pois converge toda a atitude individual numa peregrinação quase doentia (ou doentia) pelas sendas do mestre. Porém, sem sombra de dúvidas, a grande "revelação numinosa" do século XXI, fomentada durante boa parte do último século, é, indiscutivelmente, o presidente Barack Hussein Obama, ícone pop em evidência e franca ascensão. Obama, o maior popstar da América (e América inclui, com surpreendente adesão, a Latina), vangloria-se na certeza de estar, hoje, com a popularidade estendida ao mundo a fora, e mesmo durante a eleição de 2008 deixou a mostra sua flexibilidade em utilizar de situações adversas como material de autodivulgação e angariação da simpatia de eleitores e não eleitores, até não americanos. De uma hora para outra, o ódio aos Estados Unidos nutrido por nações espalhadas pelo globo (e em número alto concebida por grupos interessados em se beneficiar disso) parece ter se dizimado ante a "queda" do império bushiano e a coroação do primeiro presidente negro, a marca registrada do sucessor na Casa Branca. Obama transcendeu as barreiras entre os povos e ganhou a confiança de pessoas tão distintas, exatamente como um ídolo midiático daqueles mencionados no início deste parágrafo.

Obama e os segmentos da imprensa mais influentes foram felizes na empreitada realizada. Assim como um popstar tem sua notoriedade, a mesma acarreta o surgimento de polêmicas e suspeitas quanto à idoneidade da figura pública em destaque. O passado militante do presidente americano, recheado de pormenores interessantes, como o envolvimento com indivíduos que recebem o título de terroristas, bem como a sua relação com organizações não governamentais pouco amistosas, sem falar na acusação do advogado Philipe Berg sobre a inautêntica certidão de nascimento do elegido, passaram imunes a um esclarecimento público, graças à falta de atenção (proposital?) dos fiéis escudeiros sempre prontos a defender aquele que pode lhes agregar algum bem. Pelo menos uma defesa transparente seria de bom tom para incentivar, até mesmo, a clareza da atividade política e fortalecer, dessa forma, o regime democrático que não se consolida se os cidadãos não dispõem de consciência sobre a veracidade dos fatos. O que esteve em jogo, porém, não foi a democracia, mas a pseudodemocracia, a simulação de um estado de direito para conseguir levar ao poder o intocável Obama e sua trupe de servidores. Com o lema "Sim, nós podemos!", nada tão novo em termos de oratória falaciosa, Obama foi sinal de esperança da resolução da crise econômica mundial e solução da paz, aquele que irá romper definitivamente com a tirania norte-americana, redimir os erros passados e instaurar um reino de justiça e fraternidade universal.

Toda essa canastrice retórica demonstra, na prática, que Barack Obama tornou-se, no translado à presidência, mais do que um popstar com fama irrestrita, e sim um mito formidável, de eficácia simbólica poucas vezes vista. Fruto de manobras de marketing e de boa perícia no uso das ferramentas comunicacionais, a mitologização de Obama foi sendo gerada passo-a-passo, a partir de etapas sucessivas que submetiam a realidade ao plano de caracterização modal do "texto" de candidatura e, agora, colhe as beneméritas congratulações.

O semiólogo francês Roland Barthes escreveu diversos artigos para jornais na década de 50, sendo estes reunidos e publicados na sua obra Mitologias, em que desvenda as artimanhas modernas de criação de mitos nos mais variados ambientes e discursos, proferindo a partir destas análises uma teoria do mito na era da comunicação de massas. Segundo Barthes, o mito é uma fala, ou seja, constitui-se como sistema de comunicação em que uma mensagem é transmitida, gerando efeitos de convencimento baseado na sua ilusória naturalidade. Entendendo fala como "toda a unidade ou toda a síntese significativa, quer seja verbal ou visual", o mito não é pura informação oferecida mas é a forma pela qual uma informação é tratada. Assim, tendo a forma como uma espécie de depredação do sentido - atinge e esvazia a historicidade de determinado elemento real - produz uma significação (o próprio mito) que se presentifica como fato explícito e constatável, ainda que não imponha necessidade de explicações e descrição analítica.

Dentre as características destacadas por Barthes, pode-se expor a evacuação do real de sua historicidade, a falta de veracidade objetiva ante a sobreposição valorativa, a intenção significativa e o caráter imperativo de seu discurso. Mas talvez as duas marcas observadas com maior importância para este artigo seja a de que o mito é uma fala despolitizada a inocente. É despolitizado por depauperar o reflexo da conjuntura social - os caracteres das relações humanas em sociedade - em vista da sua mensagem apática politicamente. Ou seja, não pode haver no interior do mito uma propulsão dialética de forma alguma. E quanto à inocência, convence a recepção da perenidade de sua existência em detrimento da sua ligação circunstancial. Vale a pena ler as palavras de Barthes sobre o último aspecto: "Passando da história à natureza, o mito faz uma economia: abole a complexidade dos atos humanos, confere-lhes a simplicidade das essências, suprime toda e qualquer dialética, qualquer elevação para lá do visível imediato, organiza um mundo sem contradições, porque sem profundeza, um mundo plano que se ostenta em sua evidência, cria uma clareza feliz: as coisas parecem significar sozinhas, por elas próprias".

Obama virou um mito. Ou melhor, foi feito mito. Sua história pessoal e política sucumbiu ante a muralha da significação mítica que o envolveu e cingiu sua candidatura. Ele não disputou uma eleição como outra qualquer, esteve acima desta. Obama eclodiu como o grande salvador do mundo a quem todos deveriam venerar e, sem medo de exagerar, prestar culto. Evidentemente não se trata de religião no sentido estrito do conceito, mas de um furor semelhante a de uma religiosidade inepta. A suposta naturalidade da liderança de Obama, o homem acima do bem e do mal, de toda a intolerância e impostura, fez dele o presidente dos Estados Unidos. Sua prosa amistosa e "humanitária" induz um encantamento aliciador sem, contudo, incitar apuração das intenções ocultas sob as palavras; são palavras de agrado imediato por serem demasiado genéricas, mas de fundo fortemente ideológico. E o povo, crente de ter obtido uma vitória democrática, foi ludibriado de maneira magistral pela sagacidade de estratagemas ideológicos, criadores de um farsante disfarçado de divindade protetora. A parafernália da última eleição ensinou que os homens têm caminhado lentamente para o amadurecimento político.

A frase pragmática de Obama - "A mudança chegou à América" - revela não apenas uma postura de governabilidade, mas a transição de um modelo menos agressivo e dissimulado para outro, de base manipulatória e ficcional. Acabou a ingenuidade de se pensar no candidato idôneo e moralmente admirável. Estabeleceu-se de vez a substituição, conforme salientou Guy Debord, do ser para o parecer, um caminho provavelmente sem volta enquanto não houver uma reavaliação crítica de todos os valores políticos reais e do conhecimento essencial acerca da ação democrática. Sem isso, tudo permanecerá como está, e os ídolos continuarão a se intrometer e se fortalecer no meio da sociedade, modificando-a e enfraquecendo o seu potencial transformador. Crer nisso é colocar-se alerta e fomentar um otimismo vindouro. Afinal, até quando as pessoas estarão dispostas a ceder sua consciência atuante e seu protagonismo social para permanecerem dopadas e iludidas pelo show de astros fajutos?

Michel Farah Valverde - Bacharel e Licenciado em Filosofia. Mestrando em Artes pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Nenhum comentário:

Postar um comentário